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MUNDO MUÇULMANO
MUNDO MUÇULMANO

 

 

Na esteira de todos os conflitos políticos e econômicos que hoje se travam entre as grandes potências ocidentais e várias nações e organizações do Oriente Médio, encontra-se sem muito esforço um fator ideológico que, livre de uma maior análise, atribui as questões – como defeitos ou glórias – de ambos os lados à sua religião dominante. Não proponho aqui que devemos passar por cima do fator religioso, longe disso: sua análise é central. O que pretendo questionar é quão ingênua têm sido essa análise – além de dizer porque o lado “cristão” não pode usar dessas apressadas conclusões para se elogiar.

 

Não é difícil ilustrar esse pensamento que, afoitamente, cai no reducionismo ao islamismo. Temos opressão às mulheres no Oriente Médio? Islamismo. Conflitos étnicos? Os islâmicos são culpados. Mutilação genital feminina? Is-la-mis-mo. Terrorismo? Islamismo aplicado! Essas apressadas conclusões podem receber o nome “Islamofobia”, termo que oscila entre uma crítica legítima aos que analisam o Islã de forma leviana e uma palavra que serve de escudo para defender o Islã de muitas críticas extremamente pertinentes. Por esse motivo, não será usado.

 

Nesses rápidos exemplos, muitos problemas lógicos já se colocam rapidamente. Em primeiro lugar, claro, nota-se que são metonímias lógicas altamente prejudiciais: entendem o todo pela parte. É quase que exaustivo repetir, mas nem todos os islâmicos são terroristas – na verdade só uma ínfima parte deles é. A mutilação genital, especificamente, se deve a muitas heranças culturais heterogêneas que não islâmicas. Mas não é a esses erros altamente comuns que quero me dedicar, e sim a uma aplicação comparativa de tais conclusões.

 

Se não se pode afirmar que tais fenômenos se devem exclusivamente ao islamismo, um observador não muito atento já poderia apresentar um outro problema: tais situações se encontram mais fortemente e mais frequentemente em “países islâmicos” que em “países cristãos”¹. E, com alguma eloquência, poderia afirmar que isso prova a superioridade moral do cristianismo ao islamismo: o primeiro aparece nas prósperas e livres democracias europeias, o segundo no obscuro Oriente Médio. Diria, então, que as barbaridades que nós ocidentais enxergamos na o Oriente Médio encontram sustentação no corão e, voilá, tudo está explicado pelos doutos leitores de jornais. E de fato é isso que se diz aos quatro ventos, sendo sem dúvida a conclusão mais fácil ao usar de maneira infantil um método comparativo sociológico.

 

Encontrar sustentação para muitas práticas que consideramos desumanas não é difícil de fazer tendo em mãos uma bíblia cristã – não menos do que conseguiríamos encontrar no corão. Um mínimo de senso histórico garante o conhecimento de que, se alguns hoje praticam a mutilação genital feminina, há alguns séculos os cristãos queimavam mulheres vivas.

 

Se hoje alguns islâmicos lançam mísseis contra o ocidente, houve um tempo em que os cristãos se organizavam em exércitos a fim de invadir os países islâmicos nas Cruzadas. Ora, barbaridades tão grandes quanto as que hoje se procuram justificar na fé islâmica já beberam na fonte da fé cristã. Qual é, então, a explicação para a disparidade apontada pelo nosso não tão atento observador? A resposta encontra-se quando se analisa os locais e os momentos históricos em que o cristianismo se revelou opressor, tirânico, bárbaro. Ou, em contrapartida, quando se volta os olhos para os países em que o islamismo menos aparece como justificativa para as opressões mais diversas. E, dito isso, a resposta é rápida: a presença efetiva de um Estado laico é a chave para entender porque as mesmas religiões se mostram opressivas em tal lugar – no tempo e no espaço – e não o fazem em outro.

 

De fato – algo que uma mínima experiência em pesquisas, reflexões e debates pode nos ensinar – é sempre necessário que, ao analisar um objeto qualquer, se possua um razoável método de análise consolidado, uma bagagem cultural algo abrangente no assunto e, em síntese, um mínimo ponto de partida teórico. Do contrário o corre-se o risco de ser engolido pelo objeto, de ser atropelado por ele e suas aparências. É esse erro que comete o observador não muito atento que pretende provar a superioridade moral do cristianismo sobre o islamismo.

 

Com o advento do Estado laico, foi possível para uma grande população humana estabelecer as bases de sua convivência em normas legais, que, mais ou menos eficientemente, protegem o indivíduo humano de ser oprimido de forma intensa pelas crenças religiosas de outrem. No lugar dos mandamentos e dos costumes, antes absolutos, colocamos os direitos individuais – conquista que certamente não é pequena. Em face disso, quando nos voltarmos para povos dilacerados por conflitos religiosos ou completamente presos por um regime teocrático, nos lembremos de que apenas a laicidade nos protege de cair em tais situações desoladoras. Inimigos da laicidade são, desse modo, inimigos da liberdade em geral; saibamos nos defender de quem nos quer levar de volta às trevas.

 

_____________________________________________________________ 1. Para evitar a confusão de termos, lembro um mau uso desses termos: um fundamentalista qualquer, por exemplo, pode se referir a qualquer pais no mundo como um “país cristão” ou “país católico” para justificar a destruição do caráter laico do estado escolhido e promover políticas públicas baseadas na sua fé. Absolutamente não se usa esse termo com tal significado, e sim somente como um instrumento de praticidade e a fim de ilustrar mais fielmente o raciocínio típico. Poderia dizer “países laicos com maioria da população cristã” ou “países cuja religião dominante é o cristianismo”, com igual efeito.

 

2. Para não mencionar a barbaridade da homofobia e do machismo que, sem dúvida, até hoje procura sua justificação na fé cristã. No caso da homofobia, é quase desnecessário lembrar que mesmo líderes religiosos cristãos em alguns paises no mundo a promovem.

 

 

 

INVASÃO DA PENINSULA IBÉRICA

 

Desde os finais do século VII que os árabes atacavam as costas do sul da península Ibérica. O conde D. Julião, governador visigodo de Ceuta, convida os muçulmanos a desembarcar na península, como forma de retaliação pelo facto da sua filha ter sido raptada pelo rei visigodo Rodrigo. Em julho de 710 o conde proporciona quatro barcas para que os muçulmanos desembarquem em Tarifa, num acto que serviria para a exploração do terreno. Em abril ou maio de 711, Tariq ibn Ziyad, um antigo escravo que se tinha tornado lugar-tenente do governador da Ifriqiya (uma província do império dos Omíadas, que corresponde à Tunísia), Musa Ibn Nusayr, atravessa o estreito que separa a África da Península Ibérica, e que a partir de então receberia o seu nome (Gibraltar, de Jabal al Tariq, "a montanha de Tariq"), com um exército constituído por árabes e berberes. Esta invasão resultou não só das ambições islâmicas, mas também da resposta a um apelo lançado por uma das facções visigodas, a dos partidários de Ágila, que eram opositores do rei visigodo Rodrigo.

 

Em julho do mesmo ano, o exército islâmico trava uma batalha decisiva com as tropas do rei Rodrigo num local tradicionalmente identificado pela historiografia como o rio Guadalete (Batalha de Guadalete), mas que alguns investigadores consideram ter ocorrido junto ao rio Barbate, e que saldaria na vitória das forças muçulmanas. O rei Rodrigo desapareceu em combate; uma tradição cristã afirma que ele teria sido sepultado em Viseu. Tariq continuaria o seu avanço e conquistaria Toledo, capital do reino visigodo, onde passa o Inverno de 711. Por esta altura, o governador da Ifriqiya chega à península e censura Tariq pelo acto da conquista. O califa omíada de Damasco, al-Walid, nada sabia sobre esta invasão.

 

A chegada dos árabes e dos berberes foi saudada pelos judeus, que tinham sido perseguidos nas últimas décadas do reino visigodo. As determinações de sucessivos concílios da Igreja peninsular tinham contribuído para a discriminação deste segmento populacional: o III Concílio de Toledo determinou o baptismo forçado de crianças filhas de casamentos entre judeus e cristãos; o XVI proibiu os judeus de praticarem o comércio com cristãos, o que provocou a ruína de muitas famílias, e o XVII condenou-os à escravatura sob o pretexto de conspirarem, junto com os judeus do norte de África, para a queda do reino visigodo.

 

Muitos judeus abriram as portas das cidades para facilitarem o avanço das tropas islâmicas e ofereceram-se como guardas das cidades ao serviço dos novos senhores. A conquista islâmica da península seria efectuada num período de cinco anos por Tariq, Musa e Abd al-Aziz (filho de Musa). O território que corresponde aoque é hoje Portugal foi atingido pela expedição de Abd al-Aziz entre 714 e 716. Em 718 ocorreu a Batalha de Covadonga, durante a qual um grupo de cristãos refugiados nas Astúrias, liderados por Pelágio, derrotou os muçulmanos, o que os forçou a se retirarem daregião cantábrica. As forças islâmicas levam a cabo várias expedições contra a Gália, mas são detidos em 732 em Poitiers pelo rei Carlos Martel. Até 756 o Al-Andalus teve vinte governadores dependentes de Damasco, tendo em Sevilha, e mais tarde em Córdova, a sua capital.A invasão islâmica da Península Ibérica, também referida como invasão muçulmana, conquista árabe ou expansão muçulmana, refere-se a uma série de deslocamentos militares e populacionais ocorridos a partir de 711, quando tropas islâmicas oriundas do Norte de África, sob o comando do general Tárique, cruzaram o estreito de Gibraltar, penetraram na península Ibérica, e venceram Rodrigo, o último rei dos Visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete. Após a vitória, termina o Reino Visigótico de Toledo. Nos séculos seguintes, os muçulmanos foram alargando as suas conquistas na península, assenhoreando-se do território designado em língua árabe como Al-Andalus, que governaram por quase oitocentos anos.